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domingo, 4 de setembro de 2011

Conto de Arthur C. Clarke:Recordo a Babilônia

Meu nome é Arthur C. Clarke, e desejaria não ter relação alguma com todo este sórdido assunto. Mas como a integridade moral, repito, moral, dos Estados Unidos está comprometida, primeiro devo mostrar meus créditos. Só assim compreenderão vocês como, com a ajuda do defunto doutor Alfred Kinsey, provoquei involuntariamente uma avalanche que pode varrer com grande parte da civilização ocidental.
Lá em 1945, sendo operador de radar na Real Força Aérea, tive a única idéia original de minha vida. Doze anos antes que o primeiro Sputnik começasse a emitir sinais, me ocorreu que um satélite artificial seria um lugar maravilhoso para transmitir televisão, pois uma estação a vários milhares de quilômetros de altura poderia radiar para a metade do globo. Escrevi a idéia na semana posterior a Hiroshima, propondo uma rede de satélites de retransmissão a trinta e cinco mil quilômetros por cima do Equador; a essa altura demorariam exatamente um dia em completar uma revolução, e assim permaneceriam fixos sobre o mesmo ponto da Terra.
Esse trabalho apareceu no Wireless World no número de outubro de 1945; como não esperava que os instrumentos espaciais chegassem a ser comercializados durante minha vida, não tentei patentear a idéia; de todas as formas, duvido que tenha podido fazê-lo. (Se estou equivocado, preferiria não sabê-lo.)
Mas continuei inserindo-a em meus livros e hoje em dia a idéia de satélites de comunicação é tão comum que ninguém conhece sua origem. Fiz um dolorido intento de elucidação quando fui abordado pelo Comitê de Astronáutica e Exploração Espacial da Câmara de Representantes; vocês encontrarão meu testemunho na página trinta e dois de seu relatório “Os próximos dez anos no espaço”. E, como vocês verão em seguida, minhas últimas palavras tinham uma ironia que não pude apreciar no momento:
 “Vivendo como vivo no Longínquo Oriente, constantemente tenho à vista a luta entre o Mundo Ocidental e a URSS pelos milhões não comprometidos da Ásia... Quando as transmissões de televisão via satélite forem possíveis, o efeito propagandístico pode ser decisivo...”
Ainda penso o mesmo, mas havia ângulos que eu não previ... e que outras pessoas, desgraçadamente o fizeram.
Tudo começou em uma dessas recepções oficiais tão características da vida social nas capitais asiáticas. São mais comuns ainda no Ocidente, é obvio, mas no Colón não há muita competência de entretenimentos. Pelo menos uma vez por semana, se a gente for alguém, recebe um convite para coquetéis em uma embaixada ou legação, o Conselho Britânico, a Missão de Operações dos EE.W., L'Alliance Française, ou uma das incontáveis agências alfabéticas engendradas pelas Nações Unidas.
No princípio, nos sentindo mais cômodos sob o Oceano Índico do que em círculos diplomáticos, meu sócio e eu fomos pessoas insignificantes, e nos deixavam em paz. Mas logo depois que Mike apadrinhou a excursão do Dave Brubeck no Ceilão, toda a gente começou a fixar-se em nós. E mais ainda quando Mike desposou uma das beldades mais conhecidas da ilha. De modo que agora nossa consumação de coquetéis e canapés está limitada principalmente pelo rechaço a abandonar nossos cômodos sarongs por absurdos ocidentais como calças, smokings e gravatas.
Era a primeira vez que íamos à Embaixada Soviética, que dava uma festa para um grupo de oceanógrafos russos que acabavam de chegar ao porto. Sob os inevitáveis retratos do Lênin e Marx, um par de centenas de convidados de todas as cores, religiões e idiomas, formavam redemoinhos falando com amigos, ou atacando obsessivamente a vodca e o caviar. Eu estava separado de Mike e Elizabeth, mas os via o outro lado da sala. Mike fazia seu ato de “Ali estava eu a cinqüenta braças” frente a um auditório fascinado, enquanto Elizabeth o olhava enigmaticamente... e mais gente ainda olhava para Elizabeth.
Desde que perdi um tímpano procurando pérolas na Grande Barreira de Coral, vejo-me em desvantagem nestas reuniões; o ruído de superfície é uns doze decibéis mais alto do que eu posso dominar. E isso não é pouca desvantagem quando nos apresentam alguém com nomes como Dharmasiriwardene, Tissaveerasinghe, Goonetilleke, e Jayawickrema. Portanto, quando não estou assaltando o bufê, procuro um lugar relativamente tranqüilo, onde tenha alguma possibilidade de seguir mais de cinqüenta por cento de qualquer conversação em que pudesse ver-me metido. Estava dentro da sombra acústica de uma enorme coluna, estudando a cena com meu ar de indiferença tipo Somerset Maugham, quando notei que alguém me olhava com essa expressão de “Não nos vimos antes?”
O descreverei com algum cuidado, porque deve haver muita gente que pode identificá-lo. Tinha trinta e tantos anos, e supus que era norte-americano. Mostrava o esmero, o corte de cabelo, o ar do homem acostumado a andar pelo Rockfeller Center; essa aparência que era marca de pureza até que os diplomáticos jovens e os conselheiros técnicos russos começaram a imitá-la com tanto êxito. Media um metro e oitenta, tinha ardilosos olhos castanhos e cabelo negro, prematuramente cinza nas têmporas. Embora eu estivesse bastante seguro de que não nos tínhamos encontrado nunca antes, seu rosto recordava alguém. Demorei um par de dias em me dar conta de quem: recordam o defunto John Garfield? Era tão parecido que quase não havia diferença.
Quando um estranho me chama a atenção em uma festa, meu procedimento clássico entra em ação automaticamente. Se parece uma pessoa agradável, mas não tenho desejos de conhecê-la no momento, uso com ela o “Olhar Neutro”, deixando que minha vista a percorra rapidamente sem uma piscada de reconhecimento, embora não com verdadeira hostilidade. Se parecer um louco, recebe o Coup d'oeil, que consiste em um largo olhar de incredulidade, seguido de uma visão sem pressa de minha nuca. Em casos extremos se pode adicionar uma expressão de asco durante uns milésimos de segundo.
Geralmente a mensagem chega.
Mas este personagem parecia interessante e eu me estava aborrecendo, assim lhe ofereci a “Saudação Afável”. Minutos depois se aproximou entre as pessoas e eu voltei para ele meu ouvido são.
— Olá — disse (sim, era norte-americano) — meu nome é Gene Hartford. Estou seguro de que nos encontramos antes.
— É muito possível — respondi. — passei muito tempo nos Estados Unidos. Sou Arthur Clarke.
Em geral isso produz um olhar vazio, mas algumas vezes não. Quase pude ver as fichas IBM revoando atrás desses duros olhos pardos, e me adulou sua rapidez.
— O escritor de ciência?
— Assim é.
— Bom, isto é extraordinário. — Parecia genuinamente surpreso. — Agora sei onde o vi. Foi uma vez no estúdio, quando você estava no programa do Dave Garroway.
(Poderia valer a pena seguir esta pista, embora o duvidasse; e estou seguro de que esse “Gene Hartford” era falso; era muito artificial.)
— Então você está na televisão? — perguntei-lhe. — O que faz aqui? Recolhe material, ou simplesmente está de férias?
Brindou-me o sorriso franco e amistoso do homem que tem muito para esconder.
— Oh, mantenho os olhos abertos. Mas isto é surpreendente. Li seu livro A exploração ao espaço quando saiu em... é...
— Em cinqüenta e dois; o Clube do Livro do Mês nunca voltou a ser o mesmo depois.
Todo esse tempo estive tratando de julgá-lo, e embora houvesse algo nele que não me agradava, não pude saber bem o que era. De toda forma, eu estava disposto a fazer grandes concessões a uma pessoa que tinha lido meus livros e que, além disso, trabalhava na televisão; Mike e eu sempre estamos procurando negociações para nossos filmes submarinos. Mas essa, para dizê-lo brandamente, não era a linha de negócios do Hartford.
— Olhe — disse ansiosamente — estou trabalhando em um assunto importante para uma cadeia de televisão que lhe interessará; na realidade, você ajudou a me dar a idéia.
Isto soava prometedor, e meu coeficiente de avareza saltou vários pontos.
— Me alegro. Do que se trata?
— Não posso discuti-lo aqui. O que lhe parece se nos encontramos em meu hotel, amanhã às três?
 — Me deixe ver a agenda; sim, está bem.
No Colón há somente dois hotéis freqüentados por norte-americanos e acertei na primeira vez. Estava no Mount Lavinia e, embora possivelmente vocês não saibam, viram o lugar onde tivemos nosso bate-papo privado. Perto da metade da ponte sobre o rio Kwait há uma breve cena em um hospital militar, onde Jack Hawkins conhece uma enfermeira e lhe pergunta onde pode encontrar Bill Holden. Temos uma fraqueza por este episódio, porque Mike era um dos oficiais navais convalescentes que se vêem no fundo. Se olharem atentamente, o verão na extrema direita, com barba, em pleno perfil, assinando com o nome do Sam seu Spiegel na sexta volta de bar. Tal como aconteceu no filme, Sam podia permitir-lhe isso. Foi aqui, nesta mesinha diminuta, sobre as praias rodeadas de palmeiras, que Gene Hartford começou a falar... e minhas ingênuas esperanças de benefícios financeiros começaram a evaporar-se. Quanto aos motivos de Gene Hartford, se é que ele mesmo os conhecia, ainda não estou seguro. A surpresa de me encontrar e um equivocado sentimento de gratidão (do qual eu teria prescindido com alegria) jogaram indubitavelmente seu papel, e apesar de todo seu ar de confiança deve ter sido um homem amargurado e só que necessitava desesperadamente de aprovação e amizade.
De mim não obteve nenhuma dessas coisas. Sempre tive algo de compaixão pelo Benedict Arnold, como deve tê-la qualquer um que conheça todos os aspectos do caso. Mas Arnold só traiu ao seu país; ninguém, antes do Hartford, tratou de seduzi-lo.
O que desvaneceu meus sonhos de dólares foi a notícia de que a conexão do Hartford com a televisão norte-americana havia se quebrado, algo violentamente, no princípio da década de cinqüenta. Estava claro que o tinham jogado da Avenida Madison por filiar-se ao Partido, e também estava claro que, neste caso, não tinham cometido nenhuma injustiça. Embora falasse com certa fúria controlada de sua luta contra a torpe censura, e chorasse por uma brilhante, embora inominada, série de programas culturais que teria começado justo antes que o jogassem fora do ar, a essa altura eu começava a cheirar tantos ratos, que minhas respostas eram muito cautelosas. Meu interesse pecuniário no senhor Hartford diminuía, mas minha curiosidade pessoal aumentava. Quem estava por trás dele? Não a BBC...
Quando conseguiu tirar do corpo toda a auto-compaixão, falou finalmente do assunto:
— Tenho uma notícia que o fará levantar-se — disse presumidamente. — As cadeias norte-americanas terão logo competência. E será na forma que você predisse. A gente que enviou à Lua um transmissor de televisão pode pôr um muito maior em órbita ao redor da Terra.
— Felicito-os — falei cautelosamente. —Sempre estou a favor da sã competência. Quando o lançam?
— A qualquer momento. O primeiro transmissor o estacionarão ao sul de Nova Orleans; no Equador, claro. Isso significa que estará bem fora sobre o Pacífico; não ficará sobre o território de nenhuma nação e não surgirão, portanto, complicações políticas. Entretanto estará ali no céu, bem à vista de todo o mundo, de Seattle ao Key West. Pense: a única estação de televisão que se poderá sintonizar em todos os Estados Unidos! Sim, inclusive o Havaí! Não haverá forma de provocar interferências; pela primeira vez haverá um canal que pode entrar em cada lar norte-americano. E os Boy Scouts do J. Edgar não podem fazer nada para bloqueá-lo.
“De modo que essa é sua pequena fraude”, pensei; “pelo menos é franco.”
Faz tempo que aprendi a não discutir com marxistas, mas se Hartford dizia a verdade, queria lhe surrupiar tudo o que fosse possível.
— Antes que se entusiasme muito — falei — há alguns pontos que você pode ter esquecido.
— Por exemplo?
— Isto funcionará em duas direções. Todos sabem que a Força Aérea, a NASA, os Laboratórios Bell, a I.T.T, Hughes, e outras várias dúzias de agências estão trabalhando no mesmo projeto. Algo que a Rússia faça aos Estados Unidos em matéria de propaganda lhe será devolvido do mesmo modo.
Hartford sorriu com tristeza.
— Caramba, Clarke! — disse. (Alegrou-me que não me chamasse pelo nome.) Estou um pouco desiludido. Você deve saber que os Estados Unidos levam vários anos de atraso em capacidade de carga. Você crê que o velho T.3 é a última palavra da Rússia?
Foi nesse momento que comecei a tomá-lo muito a sério. Tinha toda a razão. O T.3 podia transportar pelo menos cinco vezes mais carga útil que qualquer foguete norte-americano a essa órbita crítica de trinta e cinco mil quilômetros, a única permitiria a um satélite permanecer fixo sobre a Terra.
E quando os Estados Unidos pudessem igualar essa façanha só o céu sabe onde estariam os russos. Sim, o céu saberia seriamente...
— Muito bem — concedi. — Mas por que cinqüenta milhões de lares norte-americanos teriam que começar a trocar de canal logo que possam sintonizar Moscou? Admiro aos russos, mas seus entretenimentos são piores que sua política. Tirando o Bolshoi, o que fica?
Recebi outra vez aquele sorriso triste e estranho. Hartford tinha guardado o golpe mais forte.
— Foi você quem trouxe os russos à conversa — disse — Estão nisto, certo; mas só como empreiteiros. A agência independente para a qual trabalho paga os seus serviços.
— Essa — observei friamente — deve ser uma grande agência.
— E é; a maior. Embora os Estados Unidos pretendam que não existe.
— Oh — eu disse, algo estupidamente. —De modo que esse é seu patrocinador.
Já tinha ouvido esses rumores de que a URSS ia lançar satélites para os chineses; agora parecia que os rumores deixavam vislumbrar parte da verdade.
— Você tem toda a razão — continuou Hartford que, obviamente, estava se divertindo — sobre os entretenimentos russos. Logo depois da novidade inicial, o índice de audiência baixaria a zero. Mas não com o programa que eu projeto. Meu trabalho é encontrar material que deixe todos outros canais fora de combate quando for ao ar. Você acredita que não se pode fazer?  Termine essa bebida e suba ao meu quarto. Tenho um longo filme sobre arte religiosa que eu gostaria de lhe mostrar.
Bom, não estava louco, embora durante alguns minutos eu duvidasse. Podia pensar poucos títulos melhor calculados para que o espectador sintonizasse o canal que o que apareceu na tela: ASPECTOS DA ESCULTURA TÂNTRICA DO SÉCULO XIII.
— Não se inquiete — riu Hartford, sobre o zumbido do projetor. — Esse título economiza-me problemas com os inspetores de Alfândega. É correto, mas o trocaremos por algo mais atraente quando chegar o momento.
Sessenta metros mais adiante, logo depois de umas longas tomadas inócuas de arquitetura, compreendi o que queria dizer.
Vocês sabem que há, em certos templos na Índia, inúmeras esculturas soberbamente executadas, de um tipo que nós no Ocidente jamais associaríamos com religião. Dizer que são francas é risível; não deixam nada à imaginação... qualquer imaginação. Mas ao mesmo tempo são genuínas obras de arte. E também o era o filme do Hartford.
Tinha sido filmado, caso lhes interesse, no Konarak, o Templo do Sol. Logo me informei; está na costa da Orissa, uns trinta e cinco quilômetros ao noroeste do Puri. Os livros de referência são bastante tímidos; alguns se desculpam pela “óbvia” impossibilidade de mostrar ilustrações, mas a Arquitetura hindu de Percy Brown não economiza palavras. As esculturas, diz, são de “um desavergonhado caráter erótico que não tem paralelo em nenhum edifício conhecido”. Parece exagero, mas acredito nisso depois de ter visto esse filme.
A fotografia e a montagem eram excelentes; a antiga pedra despertava para a vida diante das lentes. Havia largas tiras de sol afugentando sombras de corpos entrelaçados em êxtase, que deixavam sem fôlego; assombrosas tomadas, em primeiro plano, de cenas que, no princípio, a mente se negava a reconhecer; estudos brandamente iluminados de pedra esculpida por um professor, em todas as fantasias e aberrações do amor; incansáveis movimentos cujo significado evitava a compreensão, até que se imobilizavam em desenhos de desejo intemporal, de satisfação eterna.
         A música, principalmente percussão, entrelaçada com o agudo som de algum instrumento de cordas que não pude identificar, se adequava perfeitamente ao tempo da montagem. Por momentos era lenta e suave, como os primeiros compassos de “L'Apres midi” de Debussy; depois os tambores chegavam velozmente a um clímax de frenesi quase insuportável. A arte dos antigos escultores e o talento do cineasta moderno combinaram-se através dos séculos para criar um poema de êxtase, um orgasmo em celulóide que ninguém poderia presenciar sem comover-se.
Houve um longo silêncio quando a tela se inundou de luz e a música lasciva terminou de apagar-se.
— Meu Deus! — falei, quando recuperei algo de minha compostura. — Vão transmitir isso?
Hartford riu.
— Acredite — respondeu — isso não é nada; ocorre que é o único filme que posso levar comigo sem perigo. Estamos dispostos a defendê-lo, nos apoiando na verdadeira arte, no interesse histórico, na tolerância religiosa... Oh, pensamos em todos os ângulos Mas na realidade não importa; ninguém pode nos deter. Pela primeira vez na história toda forma de censura se torna impossível. Simplesmente não há maneira de aplicar a lei; o cliente obtém o que deseja, e em sua própria casa. Fecha a porta, liga o televisor; os amigos e a família jamais saberão.
— Muito engenhoso — falei — mas você não acha que uma dieta semelhante cansa muito em breve?
— É obvio; na variedade está o gosto. Teremos muitos entretenimentos convencionais; deixe que eu me preocupe com isso. E de vez em quando teremos programas de informação, odeio essa palavra “propaganda”, para dizer ao enclausurado povo norte-americano o que realmente acontece no mundo. Nossos filmes especiais serão somente a isca de peixe.
— Importa-lhe se tomo um pouco de ar fresco? — falei. — Isto está se tornando irrespirável.
Hartford correu as cortinas e deixou que a luz voltasse para o quarto. A nossos pés se estendia uma larga praia curva. As batangas dos botes de pesca se elevavam sob as palmeiras e as pequenas ondas se desfaziam em espuma, ao concluir sua fatigante marcha da África. Uma das paisagens mais formosas do mundo, mas não me pude concentrar nela. Ainda via aqueles membros retorcidos, aqueles rostos gelados com paixões que nem os séculos podiam extinguir.
A voz libidinosa continuou às minhas costas:
— Se surpreenderia caso soubesse quanto material há. Recorde, não temos nenhum tabu. Se se pode filmar, nós podemos televisioná-lo.
Caminhou até seu escritório e levantou um pesado volume, bastante usado.
— Esta foi minha Bíblia — disse — ou meu Sears, Roebuck, se você o preferir. Sem ela nunca teria vendido a série a meus patrocinadores. São grandes crentes na ciência e engoliram toda a coisa, até o último ponto.
Assenti. Sempre que entro em um quarto analiso os gostos literários do hóspede.
— O doutor Kinsey, não?
— Acredito que sou o único homem que o leu de capa a capa, em vez de olhar somente as estatísticas. Nesse campo é a única investigação de mercado. Até que apareça algo novo lhe tiraremos todo o suco. Diz-nos o que o cliente quer, e nós vamos dar-lhe.
— Tudo?
— Se a audiência for suficientemente grande, sim. Não nos preocuparemos com os camponeses tolos que se tornam viciados na mercadoria. Mas os quatro sexos principais receberão um tratamento completo. Essa é a beleza do filme que você acaba de ver: atrai todo mundo.
— Disso não cabe dúvida.
— Divertimo-nos muito planejando o filme que intitulei “Rincão do homossexual”. Não ria, nenhuma agência empreendedora pode permitir-se ignorar essa audiência. Pelo menos dez milhões, contando as damas. Se acredita que eu exagero olhe nos quiosques todas as revistas que tem de arte masculina. Não foi fácil chantagear alguns dos mais delicados e conseguir que atuassem para nós.
Viu que estava começando a me aborrecer; há certo tipo de obsessão que acho deprimente. Mas fui injusto com Hartford, como ele se apressou a provar.
— Por favor, não pense — disse ansiosamente — que o sexo é nossa única arma. Alguma vez viu o trabalho que Ed Murrow fez com o defunto Joe McCarthy? Isso não é nada, comparado com os perfis que estamos planejando em “Washington Confidencial”. E a nossa série “Você pode suportá-lo?” destinada a separar os homens dos maricas? Publicaremos tantas advertências por antecipação, que todo norte-americano se sentirá obrigado a ver o programa. Começará de forma inocente, apoiado em um tema muito bem preparado por Hemingway. Ver-se-ão algumas seqüencias de corrida de touros que literalmente o levantarão do assento, ou o enviarão correndo ao banheiro, porque mostram todos os pequenos detalhes que nunca se vêem nesses pulcros filmes de Hollywood. Seguiremos depois com um material realmente único, que não nos custa nada. Recorda as provas fotográficas dos julgamentos do NUREMBERG? Você nunca as viu porque não eram publicáveis. Havia vários fotógrafos aficionados em campos de concentração e tiraram todo o suco de uma oportunidade que não voltaria a apresentar-se. Alguns deles foram pendurados graças ao testemunho de suas próprias câmaras, mas seu trabalho não se perdeu. Será uma boa introdução para nossa série “A tortura através dos séculos”; muito erudita e exaustiva, embora de grande atrativo. E há dúzias de enfoques, mas agora você tem uma idéia. A Avenida crê saber tudo sobre Persuasão Oculta. Acredite que não sabe. Os melhores psicólogos práticos do mundo estão agora no Oriente. Recorda a Coréia e a lavagem de cérebro? Aprendemos muito depois. Já não há necessidade de violência; as pessoas gostam que lhe lavem o cérebro, se for bem feito.
— E vocês vão lavar o cérebro dos Estados Unidos... — disse. — Todo um trabalhinho.
— Exatamente. E o país adorará, apesar de todos os gritos do Congresso e das Igrejas. Sem mencionar as cadeias de televisão, suponho. São as que farão mais escândalo, quando virem que não podem competir conosco.
Hartford olhou o relógio e assobiou com alarme.
— É hora de fazer as malas — disse. — Às seis tenho que estar nesse impronunciável aeroporto. Não seria possível que você voasse a Macau alguma vez, para nos ver?
— Não, mas já formei uma boa idéia do assunto. A propósito, não tem medo que eu lhe arruíne o negócio?
— Por que? A publicidade nos favorecerá. Embora nossa campanha não saia até vários meses acredito que você ganhou este privilégio. Como lhe disse, seus livros ajudaram a me dar a idéia.
“Sua gratidão era genuína, meu Deus!” Deixou-me completamente mudo.
— Nada pode nos deter — declarou e, pela primeira vez, não pôde controlar o fanatismo que se escondia atrás da fachada amável e cínica. — A História está do nosso lado. Utilizaremos a própria decadência dos Estados Unidos contra eles mesmos; é uma arma ante a qual eles não têm defesa alguma. A Força Aérea não tentará cometer pirataria espacial, derrubando um satélite completamente afastado do território norte-americano. A Comissão Federal de Comunicações não pode sequer protestar a um país que não existe aos olhos do Departamento de Estado. Se tiver alguma outra sugestão, eu estaria muito interessado em escutá-la.
Não tinha nenhuma então e não tenho nenhuma agora. Possivelmente estas palavras possam servir de breve advertência, antes que apareçam os primeiros anúncios provocadores nos periódicos, alarmando as cadeias de televisão. Mas obterei algo? Hartford acreditava que não e talvez tivesse razão.
“A História está do nosso lado.” Não pude tirar essas palavras da cabeça. “Terra de Lincoln e Franklin e Melville, amo-te e te desejo o melhor. Mas em meu coração sopra um vento frio do passado, pois recordo a Babilônia.”